23 de outubro de 2022

Renascer

Como mencionei no meu artigo anterior, uma das razões do meu afastamento foi ter deixado o Covid entrar na minha vida. Não que o tivesse convidado, mas apareceu de mansinho e fez questão de ficar. A maior parte das pessoas não soube como fiquei nem como afectou a minha vida durante mais de um ano. Não pretendo fazer deste texto uma lamúria para apelar ao sentimento, mas é para mim a exteriorização de todos os medos que senti, de todas as angústias pelas quais passei e outras que ficaram. Se por um lado quero esquecer o que passei, por outro não posso deixar de lembrar, porque se na minha vida tive uma vivência antes e depois do diagnóstico de fibromialgia, posso afirmar claramente que tive uma vida antes do Covid e tenho outra depois. Cada um é livre de pensar como quer em relação a esta pandemia, mas não posso aceitar que venham com mais uma teoria da conspiração e que digam que isto é tudo uma lavagem cerebral e que não passa de uma simples gripe. Não é! 

O primeiro grande confinamento começou em março 2020. Estávamos todos em casa, mas eu era a única que estava em teletrabalho. Foram meses de incertezas, de dúvidas e de algum medo porque não sabíamos nada sobre esta doença, nem que repercussões teria no dia a dia das pessoas. Sempre tivemos muito cuidado com o distanciamento, com o porte de máscaras, com a desinfecção de tudo o que entrava em casa. Mas em dezembro, fomos infectados. Nada de alarmante em relação aos sintomas: o primeiro sintoma foi a perda total de olfacto e paladar, fora isso, um pouco de mau estar, tosse, cansaço mas nada demais. Ao fim de 4 semanas, já estava negativa e a família  já tinha toda recuperado mas eu ainda não. Pensei, "ok como tenho a fibro, o meu corpo está um pouco mais debilitado, demora um pouco mais a recuperar." Só que em vez de recuperar, os meus sintomas foram agravando. Dificuldade em respirar, tosse seca, um cansaço que se foi instalando cada vez mais e dores em todo o corpo. Até que tive que ir às urgências porque já não conseguia falar. Não escondo que estava em pânico por ter de ir ao hospital, pois nas notícias víamos cada vez mais pessoas que davam entrada nos hospitais e já não saiam. Mas não tive opção. No hospital perguntaram se tinha feito teste, eu disse que não estava positiva pois tinha feito um teste 2 semanas antes e já estava negativa. Surpresa: estava de novo positiva e foi a descida aos infernos. Saí do hospital com diagnóstico de fibrose pulmonar e bronquite, uma dose de medicamentos e recomendações de repouso absoluto, e com a indicação de ao mínimo agravamento, para regressar ao hospital.

Foram semanas que se tornaram meses. Sem força, sem ânimo, a minha única preocupação era respirar e não me cansar.  Se com a fibro já sabia o que era sentir cansaço sem motivo aparente, aqui a situação era bem mais grave. Não conseguia andar 10 m, sem ficar extenuada, não censeguia falar ao telefone, tomar banho exigia de mim um esforcço hercúleo. A minha médica renovava a baixa de mês a mês e cada vez que eu saía de lá, tinha uma crise de choro pois se por um lado eu queria voltar a trabalhar e sentir-me útil, por outro tinha de me render à evidência que não estava capaz e que ainda não era desta. Os dias passaram a ser todos iguais: levantava-me, tomava o pequeno-almoço, saía com a cadela à rua só até descer as escadas do primeiro andar e tinha que voltar para casa exausta. Voltava a dormir até meio da tarde até que chegava o namorido ou filha e eu fazia um esforço para estar mais animada. O cansaço, o desânimo, as dores não me largavam. E como se não bastasse, ainda não tinha recuperado o paladar nem o olfacto. Os meus dias eram literalmente vazios. Vazios de cheiros, de sabores, de emoções, de vida...

As pessoas não têm noção do que isto é nem de como isto limita ao nosso dia-a-dia. Na tv ouvia de um lado as notícias negras relacionadas com isto e depois ouvia os negacionistas, apologistas das teorias da cosnpiração! 

Com o tempo fui desenvolvendo outros sintomas, desta vez neurológicos. Sentia as palmas das mãos e as solas dos pés a queimar tanto que tinha que ficar parada com dores nos pés. A juntar a isto, tinha vertigens, tonturas e perdi a noção de profundidade. Por exemplo, não conseguia descer escadas sem ficar em pânico por não perceber em que degrau estava. E ainda hoje, quase dois anos passados, consigo subir escadas sem me afectar, mas para descer, preciso que vá alguém à minha frente ou tenho de me agarrar ao corrimão e descer um degrau de cada vez para não me desequilibrar. Fiz ressonância magnética e electromiografia que detectaram morte de algumas células cerebrais e uma hidrocefalia que devia ser vigiada. Quando perguntava se era tratável, a resposta era a mesma "pode ser do Covid, vamos aguardar". 

Durante semanas senti-me afundar dia a dia. Todos à minha volta diziam que era uma fase, que ia passar. Eu sei que as intenções eram boas mas, para mim, que não via melhoras nenhumas, estava num buraco sem fundo. Houve dias e dias em que não tinha sequer ânimo para tomar banho, lavar os dentes ou comer. Nem sequer via motivos que o justificasse, pois para mim, a energia despendida não iria compensar o benefício. Nunca tive ideias sombrias, mas foi muito difícil convencer-me que havia vida além de tudo o que eu estava a passar. Dei por mim a viver uma vida de faz de conta: ao pé dos meus, brincava e mantinha-me animada, mas quando estava sozinha, deixava-me entregar aos meus medos e angústias.

Tive a sorte de ter um núcleo familiar que sempre me deu apoio e uma psicóloga fantástica que respeitou sempre os meus ritmos. Ouvia-me não me julgava. Antes pelo contrário... quando eu dizia que não me reconhecia, que eu não era nada disto e que sempre consegui resolver tudo na minha vida, ela dizia-me que eu sempre consegui dar a volta por cima, mas que há momento na vida em que temos que parar e "aceitar". Foi quando ela me disse, entre outras coisas que, para eu conseguir superar emocionalmente esta fase, teria de fazer o luto da pessoa que eu fui antes do Covid e aceitar esta nova pessoa. Doeu bastante mas foi um dos momentos marcantes para a minha cura, pelo menos a nível emocional.

Entretanto fui obrigada a recomeçar a trabalhar pois, num controlo da segurança social, a excelentíssima senhora doutora disse que "Covid não é doença e que não era razão para estar parada sem fazer nada". Retomei, mas sempre em teletrabalho. Felizmente os meus responsáveis aperceberam-se bem do estado em que eu estava e eu fazia o mínimo possível de forma a não me esforçar, pois muitos dos dias não podia sequer falar ao telefone. Apercebi-me com o tempo que a minha memória também tinha ficado muito afectada. Não conseguia pensar em duas coisas ao mesmo tempo e gerir situações de stress era impensável. A minha psicóloga aconselhou-me a fazer testes neuro-psicológicos para afastar qualquer tipo de doença degenerativa, do tipo Alzheimer. Felizmente essa hipótese foi afastada, o meu problema era mesmo o cansaço mental devido à situação em que me encontrava e a ansiedade que daí advinha.

Nessa altura a minha médica começou a dizer-me que algumas pessoas que foram infectadas com o vírus, por razões desconhecidas, mantinham alguma da sintomatologia e até desenvolviam outros sintomas ao longo dos meses, o chamado Covid longo. Por ser um novo vírus, não havia estudos suficientes sobre as repercussões que esse vírus viria a produzir nos casos de Covid longo. Tudo era uma incógnita.

Com o aparecimento da vacina, a minha médica recomendou tomá-la, uma vez que começavam a aparecer estudos que demonstravam que a vacina poderia ter efeitos benéficos em situações de Covid longo. Estava tão optimista que não via a hora. Depois de levar a vacina, arrependi-me ao fim de algumas horas, pois as dores no corpo estavam no limite do suportável. Mas ao fim de 48h, os sintomas aligeiraram e comecei a sentir-me melhor.

O tempo foi passando e fui conseguindo levar uma vida normal. Sempre em teletrabalho e minimizando o esforço físico para não me cansar demasiado. Ao fim de 8 meses, ainda não tinha recuperado o olfacto nem o paladar, continuava com as perturbações neurológicas mas conseguia ter uma atitude mais positiva em relação ao futuro.

Renascer

Em Agosto, o governo lançou um projecto de tratamento para os doentes de Covid longo. Havia três unidades que se ocupavam destes casos, uma exclusiva para recuperação física, outra para recuperação de problemas do foro psicológico e outra multidisciplinar que englobava tudo isso mas incluindo terapia para recuperação do olfacto e paladar. Depois da primeira entrevista e dos testes físicos feitos, fui indicada para a unidade multidisciplinar.

O tratamento era de 3 semanas intensivo (todos os dias), que consistia em aulas de recuperação física (sessões de desporto personalizadas, vigiando todos os sinais vitais), aulas de hidroginástica intensas, sessões de reflexologia plantar, fisioterapia personalizada e adaptada, sessões de psicoterapia individual e de grupo, sessões de nutrição e ateliers para treinar o cérebro a reconhecer os cheiros. Foram 3 semanas muito intensas, pois os tratamentos eram de manhã e quando chegava a casa, mal comia e tinha que me deitar, exausta. Mas ao fim das 3 semanas, comecei a recuperar. Fui mantendo os exercícios aprendidos e fui melhorando.

Ao fim de algumas semanas, nem parecia a mesma. Já conseguia fazer caminhadas, já fazia desporto e já conseguia aguentar um dia inteiro no escritório, com toda a logística que isso implica (levantar cedo, preparar para sair, aguentar as horas no trânsito).

Ter tido a oportunidade de fazer este tratamento foi tão marcante para mim, que queria fazer qualquer coisa que vincasse esse momento da minha vida. Foi quando decidi fazer uma tatuagem, a minha primeira tatuagem. Com tudo o que tinha passado, a tatuagem a fazer era para mim mais que óbvia pois foi para mim um renascer das cinzas.

Hoje carrego comigo a minha fénix. Todos os dias olho para ela e me faz sentir grata por ter conseguido ultrapassar um marco que muitos infelizmente não tiveram a mesma sorte. Saí desta experiência mais forte mas paradoxalmente mais frágil porque me apercebi que a linha entre a vida e a morte é tão ténue e que tudo pode virar e acabar sem darmos conta.

Tal como dizia Nietzsche, "um homem precisa se queimar nas suas próprias chamas para poder renascer das cinzas."

Sem comentários:

Enviar um comentário