Carta aberta às pessoas saudáveis
Sou portadora de algumas doenças crónicas, auto-imunes, degenerativas e também
invisíveis. Já deves ter ouvido falar de Fibromialgia. Pois bem, essa é uma das
minhas amigas invisíveis e é precisamente essa que me traz aqui. De certo que,
se já ouviste falar desta doença, que pode ser altamente incapacitante,
rapidamente fizeste juízos de valor. É uma doença que não se vê, não se
diagnostica, não se mede, mas sente-se e muito. E se não acreditas em mim, o
problema não sou eu, és tu!
Imagina não te sentires bem, mas não sabes explicar porquê, nem onde te dói, nem o que sentes, nem quando sentes ou porque sentes, só sabes que algo não está bem. Imagina que queres ir ao médico explicar isto e não tens palavras para descrever o teu estado de espírito. Imagina que no meio das tuas tentativas de explicação ao médico, aquele que é suposto zelar pela tua saúde e pelo teu bem-estar, olha para ti e diz: "Isso é da sua cabeça!" Consegues sequer imaginar como me sinto? Consegues sentir a dimensão da minha desilusão e desespero? Se não consegues, o problema não sou eu, és tu!
Claro que depois disto, o que mais desejas é chegar a casa e seres abraçada por quem te acompanha no dia a dia, seja marido, mulher, filhos, não importa. Só que não. Em vez do calor de um abraço, de um beijo, de um carinho, encontras uma frieza no acolhimento, uma distância na empatia, um desrespeito total pelo que sentes. A preocupação em casa, continua a ser o que é o jantar, quando é o jantar, ou se a roupa está passada a ferro. Consegues imaginar que sinto que não tenho valor para ninguém e que sou uma mera executante das tarefas rotineiras? Se não consegues, o problema não sou eu, és tu!
Imagina sentir 24 horas por dia, 7 dias por semana, sem parar, sem descanso, dores constantes que te impossibilitam de levar uma vida normal sem pensar se vais conseguir executar esta ou aquela tarefa, sem que se repercuta mais tarde no teu corpo. Imagina como seria levantares-te cansado e deitares-te extenuado. Imagina estares desejoso de acabar o dia porque já não aguentas mais, mas sabendo que o dia seguinte vai ser e-x-a-c-t-a-m-e-n-t-e igual. Imagina estares tão exausto que não consegues conciliar o sono. Imagina que vês as horas a passar e não tens posição na cama. Imagina levantares-te no dia seguinte e ouvires um: "Acordaste mal disposta!" Imagina-te preso a um "time loop" em que este cenário se repete por dias indeterminados. Consegues imaginar um pouco como me sinto? Consegues sentir ao menos um pouco de como me sinto enclausurada no meu corpo? Se não o consegues, o problema não sou eu, és tu!
Agora pensa como seria a tua vida se, de repente acordasses com uma gripe descomunal e que mesmo assim, terias que desempenhar todas a tarefas que esperam de ti: trabalho, casa, filhos, amigos, vida social, etc...Imagina-te preso a este cenário se repete por dias indeterminados. E se ainda achas pouco, imagina que além da gripe, sentes um ardor na pele, nos músculos, nas articulações, como se tivesses adormecido ao sol do meio dia. Sentes também uma comichão e um formigueiro inexplicável por todo o corpo, que te leva quase à insanidade, porque sentes, mas não vês nada. Consegues colocar-te um pouco no meu lugar? Um pouquinho apenas? Se não o consegues, lamento, mas não sou eu, és tu!
Imagina agora, que estás em qualquer lado a falar com alguém, e de repente te esqueces da palavra seguinte que vais utilizar no teu discurso, ou sequer do que estavas a falar, ou pior, esqueces o nome da pessoa que está à tua frente. Imagina ires ao multibanco e estás a marcar o código e de repente, te falham os 2 últimos números e por mais que queiras, não te consegues lembrar. Imagina que, em casa, trocas os lugares às coisas sem dares conta, e ficas doido à procura delas e encontras, por exemplo a tesoura no frigorífico, ou a sopa na dispensa. Imaginas como me sinto, quando me apercebo que não me reconheço como pessoa? Consegues imaginar como me sinto inútil quando ainda por cima, gozas com a situação? Se não consegues, não sou eu, és tu!
Se pensas que era "só" isto, enganas-te. Imagina que vais na rua e encontras uma pessoa amiga, que depois de lhe explicares tudo pelo que tens passado, olha para ti e diz: "mas tens tão bom ar?" Apercebes-te em fracções de segundos, que não acredita em ti, que no fundo, no fundo, julga estares a mentir. E pensas que, se as pessoas que vivem contigo e partilham os mesmos espaços que tu, não acreditam em ti e não te respeitam, não admira que quem está do lado de fora, ainda menos acredita. Imaginas agora que me sinto ainda mais sozinha, isolada, incompreendida mas sobretudo, desrespeitada.
Imagina tu que, depois de meses a fio, incapaz de funcionar como ser humano, quando tudo está a desmoronar-se à tua volta e tens que decidir entre passar os teus últimos dias com alguma qualidade de vida, a que tens pleno direito ou a continuar a morrer aos bocadinhos, vais a uma junta médica, com esperança de que, finalmente possas ter um reconhecimento e confirmação por quem tem obrigação de o fazer, e te dizem que não estás doente e que tens obrigação de continuar a definhar mais um pouco dia a dia, todos os dias. Consegues agora colocar-te um pouco no meu lugar? Consegues perceber o meu sentimento de asfixia permanente provocado pela incompreensão constante e desrespeito por mim? Se não consegues, o problema não sou eu, és tu!
Muito, mas muito mais haveria por dizer, mas porque eu consigo colocar-me no teu lugar, não te quero sobrecarregar com tanta informação. Mas se com isto tudo pensas que, sou eu que me vou adaptar aos outros, que me vou anular de modo a que os outros me aceitem, ah acredita que o problema não sou eu, és mesmo tu!
Todos os doentes, independentemente das patologias, merecem ser respeitados e não é porque a doença não se vê, não se apalpa, não se diagnostica, que não sejam dignos disso mesmo. Não preciso que tenhas pena de mim, o que eu preciso é que acredites em mim. E até que consigas fazer isso, não sou eu que tenho que mudar, és tu!
Espelha bem como me sinto.
ResponderEliminarExcelente texto!
Obrigada e força para continuar esta jornada complicada. Beijinhos
Aprisionada no próprio corpo , com este em chamas constante e avassaladora...
ResponderEliminarUm texto que revejo alguém muito querido.... Tenho uma pessoa (A mais importante na minha vida) que vive assim todos os dias da sua vida.... Nunca sei como poder ajudá-la :(
ResponderEliminarMuita Força Cristina. Grata pela partilha.
Palavras tão certas :(
ResponderEliminarMe vejo nesse texto perfeito
ResponderEliminarEu... sem tirar nem pôr... E o pior, apesar de reconhecer que o problema não sou eu mas o que os outros não são capazes de entender... apesar disso, o desânimo entranha-se insidiosamente, como o fumo... pega-se a mim, a minha pele, à minha alma... e não consigo afastá-lo de mim por mais que tente...
ResponderEliminarObrigada Cristina! No meio do deserto sabe tão bem encontrar uma flor... Bem-haja.